segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Carta do exílio

 
               Querida irmã,
               peço-lhe que tenhas um pouco de cuidado com esta carta, já que o que estou a escrever não é para os pobres e infantis leitores que podem estar te rodeando agora. Portanto, antes de continuar aconselho-te para que sentes em algum lugar ausente de incômodos. Escrevo-te pelo enorme apego que tenho. Sinto que devo-lhe uma, forçada e não totalmente verdadeira, satisfação do meu motivo para abandonar-te e a todos os outros que contigo vivem.
               Os seus malditos sorrisos coniventes e suas alegrias perigosamente forçadas. Obrigações que não condizem a mim mas me envolvem e me arrastam fortemente. Atraente familiaridade que vejo de longe, tão repugnantes entranhas que vejo quando perto. Ao mesmo tempo assustadora e magnética. Tão jocosamente usando suas garras de acolhimento para depois desvesti-las e rasgar minha pele marcando meu grande e eterno título de traidora. Título com o qual sofro calada para não ganhar a inobre fama de mártir, que não me cai bem.
              O que dizer para estes que gritam: “Sim, claro, pequena sofredora, tua mãe lhe abandonaste quando criança, teu pai batia em ti e em tua irmã quando mais novas, certo? Por isto sofres tanto. Tens ainda a cruz de ter que trabalhar para sustentar toda tua família. Como podemos contestar tão grande sofrimento sendo que o nosso é tão infinitamente menor?”
             Aguento calada essas injúrias, pois tem eles razão. Dos males que me assaltam... nenhum se refere ao grande e único sofrimento que por eles me seria permitido, o físico. E nada seria menos aceito do que os que deveras me atingem. Então aguento cada um destes pesadelos, cada uma dessas ridículas e desajeitadas ironias que me são jogadas na cara. Pois que a única coisa que não seria bem recebida por eles seriam os verdadeiros motivos do meu exílio.
            Sei que faltam aqui os tais “verdadeiros motivos”, mas com tudo o que foi escrito nas linhas que acabastes de ler, creio que tivestes um amplo entendimento do que aconteceu comigo. Clareando-te mais um pouco, apenas não consigo ser recíproca a essa lei de apanhar, abaixar a cabeça, pedir desculpas (como se fossem minhas estas culpas), declarar-lhes amor eterno e continuar como se nada houvesse acontecido. Por acaso assemelho-me a um cachorro? Não, isso não. Se quiserem comparar-me a um animal, que comparem-me a um gato. Um animal que mantem-se junto aos outros por questões de sentir-se a salvo, por questões de manter-se alimentado e ter um lugar para dormir, nada mais.
            Mas, bem sei eu, não importa quantas pragas me forem jogadas, quantos títulos em minha pele forem rasgados nem quantas lágrimas meus cansados olhos venham a derramar... como um cavaleiro que já sabe conhecer o quão perigoso é o dragão e o quanto ele pode se ferir até sair vitorioso... Espere apenas minhas cicatrizes “tão sem motivos” esfriarem e eu voltarei para lhe ver. Na verdade, eu sempre voltarei para esse lar de mesquinhos e egoístas, pois que sou uma de vocês e quem sai aos seus não regenera.
                                                         Vejo-te em breve.

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