terça-feira, 15 de março de 2011 0 conceito(s)

Do pior de mim

Minha honra é a fidelidade
ao suspeito, insosso e irreal.
Meu orgulho por ser letal
ao machucar-te por crueldade.

Meu prazer é a língua afiada
soprando ao ouvido mentiras doces.
Minha ânsia de que levado fosses
por cada falsa palavra declamada.

Minha vida toda por tua sorte
alterada por cada pequena linha.
Minha vontade, mesmo que mesquinha
de dilacerar-te até pedires a morte.
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Smell

E por onde foge cada sentimento de compaixão, piedade, simpatia que deveria estar ali? Era a pergunta que aquela pobre garota se fazia. O que ela deveria sentir? Como se aprende a sentir quando ninguém lhe ensina?
- Pobre de mim, Ane, ele me largou e ... – como ela deveria ajudar? – e ontem eu o vi com aquela garota e... – a amiga aos prantos e seu colo e a vida passando e ao olhar para os lados a única coisa que conseguia imaginar eram quantas pessoas mais estariam perdendo seu tempo com essas tristezas passageiras. Quando terminou esse pensamento, Ane percebeu que a amiga estava em silêncio.
- O que foi?
- Perda de tempo? É essa a sua opinião sobre o meu sofrimento?
- Insignificante. O que eu acho é insignificante. Você só dá ouvidos à própria dor – disse, relativamente alheia tentando contar quantas pessoas teriam respondido da mesma maneira.
- Não diga isso, você é minha amiga, é importante para mim, saber o que acha.
- Claro, claro. É importante para você ter um ombro amigo, um ouvido paciente e uma boca que não emita mais do que exclamações monossilábicas de concordância e compaixão. – a calma de Ane deixava sua amiga cada vez mais assustada, ela tinha tanta certeza de estar sendo reprimida. – Mudando de assunto, você já reparou no cheiro que as coisas exalam?
- Che-cheiro? – Pronto, agora a amiga já não entendia se estava sendo repreendida, não se lembrava de ter terminado o namoro e se confundia com esse novo assunto.
- Isso, cheiro, tudo a minha... nossa volta tem um perfume diferente.
- Ok... então aquela garotinha correndo tem um cheiro diferente do de uma criança qualquer suada de brincar na terra?
- Sim, aquela garotinha ali cheira a gaiola de passarinho capturado que fica fazendo sujeira e cantando seu lamento o dia todo.
- Faz algum sentido, eu acho. E eu, Ane, cheiro?
- Você cheira forte àquele tipo de queijo apreciado pelos excêntricos, sabe? Daqueles que tem gosto amargo, parecem inconsumíveis, mas não fazem mal. – pela cara com que o comentário foi recebido, Ane percebeu que havia dito a maior das injúrias.
- Queijo podre? Não acredito. Você deve cheirar a rosas então, imagino.
- Não, eu cheiro a covardia, criança com medo de escuro, cor amarela, cor dos fracos...
- Mas você não é fraca, An, você é uma das...
- Não, não sou uma das pessoas mais corajosas que você conhece. Eu só tenho palavras e as uso para aproximar ou distanciar quem eu quero. E antes que me pergunte como eu escolho... bem, com os perfumes eu vejo o que pode me fazer mal ou não, assim como fiz com você.
Com certa razão, desconhecida para Ane, sua amiga se levantou, se aproximou, projetou a mão espalmada na direção à face que havia lhe dito os desaforos, hesitou e recuou.
- Você está certa, eu não consigo te fazer mal, mesmo que a sua covardia faça com que use palavras que machucam mais que socos na cara. Se quer saber...
- Não, não precisa repetir o que eu escuto de mim mesma por vezes o suficiente. – Ane levantou, ficando assim mais alta que a sua colega. – Na verdade, por mais que tenha uma nota ofensiva, já me acostumei com teu aroma e gosto muito dele agora. E antes que você vire as costas e vá-se embora indignada...
E ela não sabia se havia algum sentimento ali, ou se era apenas uma maneira de se provar não ser covarde, ou se era tudo falso e apenas um impulso, ou o que quer que fosse.. Ane apenas prendeu a respiração para não sentir a sua covardia e beijou sua amiga. Logo depois virou as costas e caminhou devagar na direção contrária, deixando para trás um perfume tão confuso quanto uma fragrância cítrica quando misturada à uma adocicada. E carregando todas as suas certezas...
- Ei, sua covarde! Volte aqui, seu cheiro horrível ajuda a disfarçar a minha podridão inofensiva.





Essa história não tem, necessariamente, um final feliz.
segunda-feira, 7 de março de 2011 0 conceito(s)

Uma semana.

- Feche os olhos e tente enxergar o escuro. O que você vê?
- Bom, eu não vejo, não tem nada para ver, só uma densa parede negra e intransponível.
- Você não vê nada?
- Não, já disse. Por que a insistência?
- Por nada, me desculpe o incômodo.
O grande porém é que não era por nada que ela perguntava. Era inconcebível em sua cabeça que mais ninguém visse o que ela via quando fechava os olhos, principalmente na hora de dormir. Aqueles olhos de gato, amarelo encarnado, aqueles olhos de quem não a deixaria em paz enquanto ela não seguisse junto. Mas para onde? Por quê?
- Você acordou gritando novamente...
- E eu disse alguma coisa?
- Não, mas você estava segurando sua cama como se fosse ser levada dela se a largasse. O que está havendo?
- Pesadelos... pesadelos... é o estresse dessa busca incessante por vencer o tempo e fazer tudo que devo dentro do prazo, somente.
- Ah, sei como é, meu trabalho tem me lev...
Indiferente ao que lhe era dito só vinha a mente aqueles olhos e aquele terror pelo qual passava logo após vê-los. Rezava o “pai nosso” cinco, dez vezes, sem nem ao menos prestar atenção ao que repetia, se ligando ao significado de proteção, que quando criança, lhe fora incutido. E depois, já sonolenta, ficava desviando o olhar daquelas órbitas sulfurosas que marcavam a escuridão do fundo de suas pálpebras como que a lhe observar.
Quando, posteriormente, adormecia, era açoitada pela visão de crianças demoníacas com mãos esqueléticas que aguardavam algo, algo que ela nunca via, algo que sempre surgia vagarosamente e tornava o ar inviável para a respiração e logo depois começava a puxá-la para algum lugar que incutia verdadeiro terror. Não sabia para onde, sabia que independentemente era o último lugar que gostaria de estar e por isso ela berrava e berrava e berrava, porque seu corpo não respondia à sua vontade, seu coração parecia prestes a explodir, sua mão se segurava à sua cama e só quando ela juntava forças o suficiente para o grito de desespero final é que conseguia acordar. Era recorrente acordar com falta de ar, coração disparado, mãos vermelhas por segurarem  a lateral de ferro da cama e com seu irmão do seu lado, olhando com uma fisgada de medo o centro daquele esgar de sofrimento.
- Ei!!
- O quê? Me desculpe, devaneios.
- Eu percebi, tem certeza que não há nada?
- Tenho, obrigada, peço, porém, que me desculpe, mas terei que me retirar, sinto ânsias de vômito.
E saiu correndo para o banheiro regurgitar toda a água que bebeu ao acordar exasperada e todo o jantar da noite anterior que pareceu se recusar a ser digerido durante a noite.
Durante uma semana ela sofreu com a aproximação constante daqueles olhos espertos e observadores que não perdiam a oportunidade de aparecer nem em seus cochilos. Dormir era uma necessidade que forçada e frustradamente estava tentando ser superada. As crianças de mãos esqueléticas começaram a se movimentar, agora sussurravam algo ininteligível que quase aguçava a curiosidade dela, mas em contrapeso o medo de ser arrastada crescia em uma escala extraordinariamente superior ao interesse pelo que não podia escutar.
Uma semana foi o tempo que levou para que os olhos mostrassem não ser apenas olhos e sim algo, talvez um monstro, sem forma definida, sem possibilidade de descrição. Uma semana foi o tempo que levou desde o dia das primeiras ânsias até as crianças de mãos esqueléticas finalmente chegarem perto a ponto de poderem afagar seus cabelos. Uma semana foi o tempo que ela conseguiu resistir com as mãos sangrando nas laterais da cama contra aquilo que a puxava. Uma semana foi o tempo que levou para escutar o que sussurravam. Uma semana foi o que ela precisou para entender que esses sussurros diziam: “você é nossa, nunca mais irá sair daqui”. Uma semana foi o tempo que levaram para encontrar o corpo, mutilado, lançado contra a parede, dentro do quarto em que ela dormia trancada. Uma semana.
quinta-feira, 3 de março de 2011 0 conceito(s)

Único desejo

- Adriana, e se te fosse concedido um único desejo?
- Essa é fácil...
- Cuidado, é um desejo só. Não poderá voltar atrás, não poderá se lamentar. Atenção para não se arrepender.
- Continua sendo fácil...
- Então me diga.
- Eu gostaria de receber, em uma bandeja de prata, a cabeça do infeliz que inventou que amar significa querer o bem da pessoa amada independentemente.
- Me desculpe, achei que gostaria de dinheiro...
- Dinheiro? Sou inteligente e vou ao fim do que quero, não gastaria meu desejo com isso.
- Fama?
- Nunca, não seria minha própria conquista, seria comprar algo que eu terei inevitavelmente.
- Então...
- Olha só, não sou altruísta, nunca fui e nunca serei. Sou possessiva, ciumenta, dominadora e quero tudo de quem estiver ao meu lado, o sangue, a alma, o cérebro. Quanto mais eu puder manter alguém preso dentro da minha bolha de ar especialmente criada para projetar e modificar o que estiver dentro, melhor para mim.
- Nossa...
- Nossa? Vai dizer que você quer ver aquela sua ex com outra pessoa?
- Não, mas..
- Não, mas... não, não... Você quer mais é vê-la amargurada, sofrendo pela sua ausência, percebendo o erro que cometeu. Então, na verdade, eu acho que se você tivesse um só desejo, deveria pedir o mesmo que eu. Sabe como é, para servir de exemplo para os outros idiotas que resolverem colocar na cabeça que só querem ver o amado feliz.
- Mas isso não é muito radical?
- Eu não creio que é radical expor o que se sente. Não devemos ser sinceros? Pois bem, a minha sinceridade só mostra o quão humana eu sou. Só mostra que eu não necessito mascarar meu ódio, minha repulsa, minha revolta, para fingir ser alguém melhor. Eu NÃO sou alguém melhor. Eu sou humana, e o que eu quero é  a cabeça desse infeliz empalhada na minha parede como troféu. Como quem diz: “Viu? Seu amor está feliz sem você e você está morto aqui na minha parede para aprender a não cultivar o altruísmo”.
- Chega, não dá mais para conversar com você. Parece louca.
- Tem razão, pareço mesmo. Você deveria escolher melhor suas companhias, hein?
- Não... não foi isso que eu disse, meu bem, eu só queria te alegrar...
- Mas você me alegrou, gosto de conversar sobre essas coisas, porque não consigo fingir que sou mais uma idiota que idolatra cada passo de outra pessoa. E, felizmente, se um dia aparecer alguém que aja assim e queira somente o meu bem, do meu lado ou não, terei dois pés prontos para dar um chute. Para que essa pessoa aprenda a me dar mais valor, já que amor não é essa coisa fofa de conto de fadas e sim uma constante necessidade de engolir a outra pessoa dentro do seu próprio mundo sem que ela possa sair para respirar ou perceber que existe vida sem você.
- Hey....
- Calma, amor, com você é diferente... - e sussurrou para si mesma – até eu me cansar...
 
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