quarta-feira, 14 de julho de 2010

Breve conto de amor - parte 2.

Era como uma febre o que eu sentia, calafrios, suores e depois calma. Deitada na cama, fingindo dormir. Todos passavam ao meu lado e sussurravam entre si. Todos sabiam que eu era uma assassina. Todos sabiam que eu havia matado sem dó, sem piedade e que não me arrependia. Sosseguei minha alma, essa sim era eu. Agora, taxada como assassina tudo o que viesse de mim seria inesperado, seria melhor do que alguém que mata poderia fazer. Porque quando se está no fundo do poço ou você acena ou tenta subir. Eu ainda não sabia o que fazer. Essa indecisão fez minha calma passar, movi-me lentamente e descobri-me presa. Os aparelhos indicaram o aumento do ritmo cardíaco, os olhares se voltaram para mim, alguém chamou a enfermeira e me injetaram calmantes. Tudo ficou tranquilo e sem foco, não sentia mais o que me prendia e adormeci. Foi um descanço bom, rápido e indolor. Não indolor porque me fez esquecer a terrível consciência do assassinato e sim porque diminuiu as dores dos machucados que obtive na tentativa de tal ação. Tentativa essa que, me orgulho de dizer, foi efetivamente completa.
Após alguns ataques parei de tentar me soltar. Já sabia minha alma ser livre e não me importava em estar com as mãos e os pés presos em uma cama de hospital. Pois bem, depois de uma longa ausencia de meus gritos fui sendo “desamarrada”, já podia passar tempos fora da cama.. e depois me liberaram para passear no sol – o que devo dizer: me fez quase voltar a ter ataques histéricos para me poupar do calor. Não importa. A enfermeira me contou que estava em um hotel psiquiátrico, que fui encontrada desmaiada ao lado de um homem morto, ambos nus. Sexto sentido, maternal ou não, fez minha mãe ir em meu apartamento e como eu não a recebi, ficou preocupada e chamou os vizinhos tão bondosos e curiosos, arrombaram a porta e descobriram. E me trouxeram para cá, inconsciente.
Depois de algumas visitas, onde sempre fingia estar dormindo e apenas escutava os choros reprimidos e o orgulho ferido 'aonde foi que eu errei?'... veio me ver um advogado, cheio de pompa. Daquele tipo que tem inteligência o suficiente para disfarçar toda a falta de caráter e toda a sua superficialidade. Conversou comigo e me expos os fatos. Óbvio que eu podia alegar legítima defesa, disse-me ele. Um desconhecido que eu levei para casa e que tentou me bater depois do sexo. Poderia alegar insanidade ou até homossexualismo. Que advogado brilhante, não? Prometi analisar o que iria dizer. Dei opiniões positivas, elogiei e ele saiu de lá, tão certo quanto eu ser louca, convencido de minha lucidez e de nossa legítima defesa.
Fiquei recolhida, quieta, em meu canto e quando o tempo esfriou ia de bom grado absorver o ar frio, o clima ameno e o céu cinza e seco que me era tão agradável. Em um desses passeios ela me chamou a atenção. Louca, como eu, assassina, como eu, e provável que com o mesmo signo, ascendente, cor dos olhos... coisas que eu nunca saberia afirmar ao certo. Me aproximei daqueles cabelos sem corte, daquela alma-irmã. Garota profunda, me olhou nos olhos e disse que matou por amor, se levantou e saiu correndo. Fiquei parada e berrei, berrei que eu também tinha matado por amor e que era para ela voltar aqui!
Ela voltou e disse em meu ouvido que sabia e que quem mata por amor não mata o amor. E que me admirava da mesma maneira que se admirava, porque nós.. nós sim, conhecíamos a única maneira de eternalizar o amor perfeito: matando-o para manter a fantasia intacta.
Não foi difícil amá-la. Era como o meu reflexo. Ao contrário e ao mesmo tempo idêntico. Passamos bons momentos, maus momentos, terríveis conversas que nos deixavam sem dormir, cada qual no seu quarto, cada qual do seu lado do espelho. Como meu reflexo, ou melhor, como todo reflexo.. há duas situações em que deixam de existir: quando o que é refletido some, morre, sai da frente do espelho; ou quando o espelho é quebrado. Logo, nós sabíamos quem era o reflexo e o refletido. Sabíamos que o reflexo é o mais fraco porque além de depender do que reflete, depende do espelho intacto para ser o mais puro e genuíno reflexo.
Sabíamos que o nosso espelho já estava rachado e quando ela disse-me que deporia alegando a – maldita – legítima defesa para ser solta e que me aguardaria do lado de fora... estilhaçou-se o vidro. Reflexo fraco, vulnerável. Durante a noite fiz aquilo que deveria ser feito. Matei-a. Simples. Não estava em mim, não me lembro se a deixei sufocada, ou envenenada, ou esfaqueada, ou seja-lá-o-que-fosse. Tenho certeza que na minha estante, ao lado do meu 'amor-perfeito' congelado, tenho agora o meu 'amor-que-quebrou-meu-coração' congelado também.
E a história é essa. Quero pedir desculpas ao senhor meu advogado, mas eu não agi em legítima defesa para salvar a minha vida. Visto que isso já não tenho e não tinha. Agi em legítimo ataque. Considerem que o ataque é a melhor defesa e verão que agi para salvar e guarnecer meu pobre coração de boas e autênticas lembranças. Espero ser condenada pelo que mereço. Posso ser louca. Mas fiz o melhor. Pois enquanto houvesse em mim a capacidade de amar, haveria também a capacidade de matar. Obrigada.


Aline Fall.

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