sábado, 31 de dezembro de 2011 0 conceito(s)

Prólogo

Era só mais uma vez. Diferente das outras só havia a bebida. O que poderia ser um sinal de que até Aline se encontrava exausta. E talvez por ser Aline quem executava a ação, esta foi mais profunda que o normal. Adormeceu logo depois, dor e sono juntos, como sempre seria. No dia seguinte, desnorteada, nem ao menos se lembrou do que havia feito até olhar seu pulso, ou melhor, todo o seu ante-braço, pernas, garganta. Realmente, longe demais. Sorte sua o tempo ter virado tão depressa. Blusas de frio com o calor que estava seria abusar da burrice alheia. De qualquer maneira, de problemas já bastavam os que não lhe pertenciam e mesmo assim carregava. E ainda havia aquela confusão do dia anterior, o que era mesmo? Não tinha muita certeza. Gostaria de se mover, mas a verdade é que estava apreciando em demasia ficar ali, parada. Pelada, sem coragem de olhar para o lado e ver se estava acompanhada. Bobagem, ela sempre estava acompanhada... engraçado... sempre que pensava assim ela sentia um arrepio, por que não dessa vez? Gabriella... só poderia ser obra de Gabriella, o bom senso e a frieza que tomavam conta de Aline, com certeza, não lhe eram típicos. E quando sentiu uma vontade repentina de chorar (obra de Amélie, apostou) percebeu que já começava tudo a se misturar novamente, elas voltavam, Gabriella, Amélie, Aline... quem era ela afinal? Sua cabeça rodava, doía, latejava, explodia. "Não, eu não sou nenhuma dessas". Respirando fundo, se contendo o suficiente, decidiu que não queria descobrir quem era (ou eram) a responsável pelos problemas da noite dessa vez. Uma hora, de certo, uma delas piraria.

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Mel in ore, fel in corde

I

Verdadeiras as minhas palavras
Verdadeiros meus sentimentos
Visto que são tormentos
Visto que são o que lavras.

II

Vista sua roupa nova
Por cima de coração carcomido
Enfeite-se com aquela trova
Do seu choro conhecido.

III

Vejo, o que digo que não vejo
Não escuto, enquanto lhe presto atenção
Não digo, para corromper sua opinião
Respiro, para não deixar vago meu azulejo

(afinal parece que na vida o espaço é rotativo, não?)

IV

E por aqui fica lançado:
Eu não preciso de frases rimadas,
preciso é que de fato entendas,
minha palavra é tão ou mais falsa do que pensas.
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Sem destinatário

           Escrevo como uma carta, que gostaria de ter um destinatário, com letra caprichada e sem nenhum erro, com quase todo o meu vocabulário que não é nada complexo e sem mentiras. Uma carta, porém, que só de existir já é falsa por completa.
           Há algo que anda por rondar meus pensamentos, por quebrar os encantos e desfazer a calmaria que por meses toma conta de mim. Há algo que insiste em perturbar a harmonia forjada de tudo ao meu redor, em acordar velhos hábitos e despertar enormes vontades que há muito foram suprimidas.
           De pior só o fato de que não existem maneiras de ceder a esses antigos sentimentos sem causar um estrago hiperbolicamente maior do que havia quando eles andavam a soltas na minha cabeça. Repetidamente na cabeça, apenas: "the pistol, the poison, the noose or the knife". E aquele descontrole da essência que é o básico do fim da calmaria. De certo que quanto mais evasiva sou mais certeiro é o meu erro. E quanto menos conclusão parece que haverá nesse texto, mais e mais defeituosa ela será quando ocorrer.
           Escrevo essa carta como uma maneira de não me sentir absurda dissertando sobre meus problemas para mim mesma. Vou escrevendo pelos cantos como quem tem vergonha de demonstrar que voltou a ser (Ninguém mais pergunta "ser o quê?", imagino eu, então, que não devo explicações). Sei que ao ler essas palavras não tão profundas ou intensas quanto outrora, muitos me darão o título de "decadente", ao que responderei que sei lidar com as críticas e os elogios, na verdade, conheço-os todos, mas quanto a decadência... esqueçam... já estou no fundo de novo e daqui não há mais como descer.
           De acordo com o fluxo de palavras que me acometeu, não sei dizer se esse texto tem sentido, ordem ou qualidade. Se não tiver nenhum desses atributos, melhor ainda, garanto-lhes que assemelha-se cada vez mais a minha própria vida.
                                            Sem carinhos,
                                                       do fim da vida.
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Clichê

rasgado,
jogado,
dilacerado,
- coração.

trocado,
costurado,
amargurado,
- coração.

desprezado,
torturado,
desfigurado,
- coração.

amado,
recosturado,
recompensado,
- coração.
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Quatro passos para voltar a escrever

Para não cair naquele esquecimento, ou naquela mesmice, ou para fugir daquela vida medíocre, obsoleta, arrastada e/ou fingida, você volta a escrever. E fica relutando sobre essa “volta” como um daqueles velhos, barrigudos, viúvos que se entregam a uma analise enfadonha do cotidiano alheio por falta do que reclamar na própria vida que não tem mais pimenta, e nem intestino para digeri-la, o suficiente.
              Parabéns, você passou para a segunda fase. Você decidiu que pode fingir que não é, nunca foi e nunca será, a decadência personificada. Passo seguinte: abrir o seu computador de última geração, comprado com o dinheiro do seu nem-tão-querido-pai-que-precisa-compensar-a-ausência-de-algum-modo; sentar na sua poltrona com um estofado incrivelmente confortável, com uma caneca de cappuccino e um cigarro, daqueles caros, porque tem que completar a imagem e ficar contemplando o vazio com uma pose artisticamente forjada.
              Já na terceira parte, onde não depende de você ou da sua pobreza material (que obviamente não existe) , um enorme espaço em branco é o que aparece no lugar da inspiração, mas quem liga? Depois de um tempo você tem um tumblr, um Caio Fernando Abreu na cabeceira, um maço vazio, um café frio e milhares de amores ridículos frustrados – que nunca existiram, mas todo mundo só fala deles, não é mesmo? – escritos no Word (porque saber escrever corretamente é coisa de gente idiota e você não sabe usar o dicionário).
              A quarta parte não existe, porque logo você se desinteressa e vai jogar seus videogames modernos, com seus amigos e algumas garrafas de vodka. Aliás, permita-me uma errata, a quarta parte (quando você realmente leva esse treco estranho que é escrever a sério) é quando você descobre que a sua vocação é se matar, se matar todos os dias para extrair do fundo de qualquer pedaço de cinzas algo de útil – e isso nem sempre acontece e aí vem aquela vontade de se matar literalmente.

- Nenhum ser-humano da terceira idade foi machucado para que esse texto fosse produzido;
- Tenho certeza que o autor acima citado vai me perdoar de dentro do túmulo dele;
- Só quero reforçar que me xingar, criticar, elogiar,  ou quaisquer coisas do gênero, não farão a menor diferença na minha vida.
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Ohne

Sem se sentir bem com a farsa,
sem se sentir bem com o medo,
sem se sentir bem com o ódio
e com o desespero,

não existe maneira de

se sentir bem com a escrita,
se sentir bem com a leitura,
se sentir bem com a lacuna
que a vida faz questão de deixar.
domingo, 3 de abril de 2011 0 conceito(s)

E continua...

    Cada dia passa sendo arrastado com pesadas correntes e ao mesmo tempo tão rápido quanto a velocidade da luz. Se imagine correndo o mais rápido que puder carregando o mais pesado que conseguir. Exagero? Nem tanto. Você praticamente se sentiria com o mundo nas costas e não tendo mais o que fazer além de correr  com ele para se esconder. Para o esconder. Para o proteger.
    Continue imaginando. Os problemas do mundo poderiam ser resolvidos por ele mesmo, mas fazem questão de que você continue envolvida com tudo isso. E você continua correndo.
    E continua correndo.
    E continua correndo.
    E não adianta olhar para os lados, não adianta chorar, ou pedir ao seu deus, ou se esconder dele, porque o mundo está nas suas costas e você não consegue largá-lo nem ao menos para dormir. E ele povoa seus pensamentos, é a sua preocupação e quando você percebe o quão pesado é, e quando você percebe o quão fatigada está, e quando você percebe que não consegue mais correr e cai, aos prantos, abandonada às traças, sobrevivendo do próprio sangue, te convencem de que você não tem o menor direito de reclamar. E você continua correndo.
    E continua correndo.
    E continua correndo.
    E começa a sangrar pelos dedos, mas não sangra pelo excesso de uso e sim pela falta dele. E começa a ganhar calos nos ombros de tanto aguentar isso tudo que lhe implicam. E continua correndo.
    E continua correndo.
    E continua correndo.
    E então, quando você não aguenta mais viver e começa a escutar a felicidade alheia e começa a tentar entender o porquê de eles não estarem carregando o mundo e começa a se desentender com quem te deu essa tarefa tão sem misericórdia e começa a tentar fugir.
    E começa a fugir.
    E começa a fugir.
    E então você tenta se matar, claro que tenta se matar, todo mundo que perde o controle tenta se matar, não aja como se fosse impossível, querido. E você somente tenta, porque é idiota, orgulhoso e tem medo de como o mundo vai se virar sem você, porque talvez o mundo tente e consiga sobreviver sem você. E então você continua fugindo.
    E continua fugindo.
    E continua fugindo.
    E então você desiste de tentar se matar, você fica tão viciado nas tentativas que você só tenta tentar se matar. E você começa a se entediar, pobre de você, precisa de amigos iguais a você e você faz amigos iguais a você e você imagina amigos iguais a você e você consegue aliviar um pouco sua imensa vontade de largar algo que talvez sobreviva sem você. E você continua fugindo.
    E você continua fugindo.
    E você continua fugindo.
    E você se dá conta de que não existe nada além de carregar a merda do seu mundo nas costas. E reclamar do seu fardo o tempo todo. E se cortar para parecer uma criança problema em um mundo problema que não reclama dos seus problemas. E fode o seu corpo problema somente para se aliviar de problemas mentais. E você se cansa disso tudo porque não há mais lugar em você para cortar, agora você é um corte e como um corte você tem que se curar. Então você cala a sua boca, junta seus pedaços, coloca seu fardo nas costas e continua correndo.
    E continua correndo.
    E continua correndo.
    E nunca, mas nunca, eu repito, nunca irá parar de correr. Velhos hábitos nós nunca largamos, certo? São eles que nos largam.
terça-feira, 15 de março de 2011 0 conceito(s)

Do pior de mim

Minha honra é a fidelidade
ao suspeito, insosso e irreal.
Meu orgulho por ser letal
ao machucar-te por crueldade.

Meu prazer é a língua afiada
soprando ao ouvido mentiras doces.
Minha ânsia de que levado fosses
por cada falsa palavra declamada.

Minha vida toda por tua sorte
alterada por cada pequena linha.
Minha vontade, mesmo que mesquinha
de dilacerar-te até pedires a morte.
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Smell

E por onde foge cada sentimento de compaixão, piedade, simpatia que deveria estar ali? Era a pergunta que aquela pobre garota se fazia. O que ela deveria sentir? Como se aprende a sentir quando ninguém lhe ensina?
- Pobre de mim, Ane, ele me largou e ... – como ela deveria ajudar? – e ontem eu o vi com aquela garota e... – a amiga aos prantos e seu colo e a vida passando e ao olhar para os lados a única coisa que conseguia imaginar eram quantas pessoas mais estariam perdendo seu tempo com essas tristezas passageiras. Quando terminou esse pensamento, Ane percebeu que a amiga estava em silêncio.
- O que foi?
- Perda de tempo? É essa a sua opinião sobre o meu sofrimento?
- Insignificante. O que eu acho é insignificante. Você só dá ouvidos à própria dor – disse, relativamente alheia tentando contar quantas pessoas teriam respondido da mesma maneira.
- Não diga isso, você é minha amiga, é importante para mim, saber o que acha.
- Claro, claro. É importante para você ter um ombro amigo, um ouvido paciente e uma boca que não emita mais do que exclamações monossilábicas de concordância e compaixão. – a calma de Ane deixava sua amiga cada vez mais assustada, ela tinha tanta certeza de estar sendo reprimida. – Mudando de assunto, você já reparou no cheiro que as coisas exalam?
- Che-cheiro? – Pronto, agora a amiga já não entendia se estava sendo repreendida, não se lembrava de ter terminado o namoro e se confundia com esse novo assunto.
- Isso, cheiro, tudo a minha... nossa volta tem um perfume diferente.
- Ok... então aquela garotinha correndo tem um cheiro diferente do de uma criança qualquer suada de brincar na terra?
- Sim, aquela garotinha ali cheira a gaiola de passarinho capturado que fica fazendo sujeira e cantando seu lamento o dia todo.
- Faz algum sentido, eu acho. E eu, Ane, cheiro?
- Você cheira forte àquele tipo de queijo apreciado pelos excêntricos, sabe? Daqueles que tem gosto amargo, parecem inconsumíveis, mas não fazem mal. – pela cara com que o comentário foi recebido, Ane percebeu que havia dito a maior das injúrias.
- Queijo podre? Não acredito. Você deve cheirar a rosas então, imagino.
- Não, eu cheiro a covardia, criança com medo de escuro, cor amarela, cor dos fracos...
- Mas você não é fraca, An, você é uma das...
- Não, não sou uma das pessoas mais corajosas que você conhece. Eu só tenho palavras e as uso para aproximar ou distanciar quem eu quero. E antes que me pergunte como eu escolho... bem, com os perfumes eu vejo o que pode me fazer mal ou não, assim como fiz com você.
Com certa razão, desconhecida para Ane, sua amiga se levantou, se aproximou, projetou a mão espalmada na direção à face que havia lhe dito os desaforos, hesitou e recuou.
- Você está certa, eu não consigo te fazer mal, mesmo que a sua covardia faça com que use palavras que machucam mais que socos na cara. Se quer saber...
- Não, não precisa repetir o que eu escuto de mim mesma por vezes o suficiente. – Ane levantou, ficando assim mais alta que a sua colega. – Na verdade, por mais que tenha uma nota ofensiva, já me acostumei com teu aroma e gosto muito dele agora. E antes que você vire as costas e vá-se embora indignada...
E ela não sabia se havia algum sentimento ali, ou se era apenas uma maneira de se provar não ser covarde, ou se era tudo falso e apenas um impulso, ou o que quer que fosse.. Ane apenas prendeu a respiração para não sentir a sua covardia e beijou sua amiga. Logo depois virou as costas e caminhou devagar na direção contrária, deixando para trás um perfume tão confuso quanto uma fragrância cítrica quando misturada à uma adocicada. E carregando todas as suas certezas...
- Ei, sua covarde! Volte aqui, seu cheiro horrível ajuda a disfarçar a minha podridão inofensiva.





Essa história não tem, necessariamente, um final feliz.
segunda-feira, 7 de março de 2011 0 conceito(s)

Uma semana.

- Feche os olhos e tente enxergar o escuro. O que você vê?
- Bom, eu não vejo, não tem nada para ver, só uma densa parede negra e intransponível.
- Você não vê nada?
- Não, já disse. Por que a insistência?
- Por nada, me desculpe o incômodo.
O grande porém é que não era por nada que ela perguntava. Era inconcebível em sua cabeça que mais ninguém visse o que ela via quando fechava os olhos, principalmente na hora de dormir. Aqueles olhos de gato, amarelo encarnado, aqueles olhos de quem não a deixaria em paz enquanto ela não seguisse junto. Mas para onde? Por quê?
- Você acordou gritando novamente...
- E eu disse alguma coisa?
- Não, mas você estava segurando sua cama como se fosse ser levada dela se a largasse. O que está havendo?
- Pesadelos... pesadelos... é o estresse dessa busca incessante por vencer o tempo e fazer tudo que devo dentro do prazo, somente.
- Ah, sei como é, meu trabalho tem me lev...
Indiferente ao que lhe era dito só vinha a mente aqueles olhos e aquele terror pelo qual passava logo após vê-los. Rezava o “pai nosso” cinco, dez vezes, sem nem ao menos prestar atenção ao que repetia, se ligando ao significado de proteção, que quando criança, lhe fora incutido. E depois, já sonolenta, ficava desviando o olhar daquelas órbitas sulfurosas que marcavam a escuridão do fundo de suas pálpebras como que a lhe observar.
Quando, posteriormente, adormecia, era açoitada pela visão de crianças demoníacas com mãos esqueléticas que aguardavam algo, algo que ela nunca via, algo que sempre surgia vagarosamente e tornava o ar inviável para a respiração e logo depois começava a puxá-la para algum lugar que incutia verdadeiro terror. Não sabia para onde, sabia que independentemente era o último lugar que gostaria de estar e por isso ela berrava e berrava e berrava, porque seu corpo não respondia à sua vontade, seu coração parecia prestes a explodir, sua mão se segurava à sua cama e só quando ela juntava forças o suficiente para o grito de desespero final é que conseguia acordar. Era recorrente acordar com falta de ar, coração disparado, mãos vermelhas por segurarem  a lateral de ferro da cama e com seu irmão do seu lado, olhando com uma fisgada de medo o centro daquele esgar de sofrimento.
- Ei!!
- O quê? Me desculpe, devaneios.
- Eu percebi, tem certeza que não há nada?
- Tenho, obrigada, peço, porém, que me desculpe, mas terei que me retirar, sinto ânsias de vômito.
E saiu correndo para o banheiro regurgitar toda a água que bebeu ao acordar exasperada e todo o jantar da noite anterior que pareceu se recusar a ser digerido durante a noite.
Durante uma semana ela sofreu com a aproximação constante daqueles olhos espertos e observadores que não perdiam a oportunidade de aparecer nem em seus cochilos. Dormir era uma necessidade que forçada e frustradamente estava tentando ser superada. As crianças de mãos esqueléticas começaram a se movimentar, agora sussurravam algo ininteligível que quase aguçava a curiosidade dela, mas em contrapeso o medo de ser arrastada crescia em uma escala extraordinariamente superior ao interesse pelo que não podia escutar.
Uma semana foi o tempo que levou para que os olhos mostrassem não ser apenas olhos e sim algo, talvez um monstro, sem forma definida, sem possibilidade de descrição. Uma semana foi o tempo que levou desde o dia das primeiras ânsias até as crianças de mãos esqueléticas finalmente chegarem perto a ponto de poderem afagar seus cabelos. Uma semana foi o tempo que ela conseguiu resistir com as mãos sangrando nas laterais da cama contra aquilo que a puxava. Uma semana foi o tempo que levou para escutar o que sussurravam. Uma semana foi o que ela precisou para entender que esses sussurros diziam: “você é nossa, nunca mais irá sair daqui”. Uma semana foi o tempo que levaram para encontrar o corpo, mutilado, lançado contra a parede, dentro do quarto em que ela dormia trancada. Uma semana.
quinta-feira, 3 de março de 2011 0 conceito(s)

Único desejo

- Adriana, e se te fosse concedido um único desejo?
- Essa é fácil...
- Cuidado, é um desejo só. Não poderá voltar atrás, não poderá se lamentar. Atenção para não se arrepender.
- Continua sendo fácil...
- Então me diga.
- Eu gostaria de receber, em uma bandeja de prata, a cabeça do infeliz que inventou que amar significa querer o bem da pessoa amada independentemente.
- Me desculpe, achei que gostaria de dinheiro...
- Dinheiro? Sou inteligente e vou ao fim do que quero, não gastaria meu desejo com isso.
- Fama?
- Nunca, não seria minha própria conquista, seria comprar algo que eu terei inevitavelmente.
- Então...
- Olha só, não sou altruísta, nunca fui e nunca serei. Sou possessiva, ciumenta, dominadora e quero tudo de quem estiver ao meu lado, o sangue, a alma, o cérebro. Quanto mais eu puder manter alguém preso dentro da minha bolha de ar especialmente criada para projetar e modificar o que estiver dentro, melhor para mim.
- Nossa...
- Nossa? Vai dizer que você quer ver aquela sua ex com outra pessoa?
- Não, mas..
- Não, mas... não, não... Você quer mais é vê-la amargurada, sofrendo pela sua ausência, percebendo o erro que cometeu. Então, na verdade, eu acho que se você tivesse um só desejo, deveria pedir o mesmo que eu. Sabe como é, para servir de exemplo para os outros idiotas que resolverem colocar na cabeça que só querem ver o amado feliz.
- Mas isso não é muito radical?
- Eu não creio que é radical expor o que se sente. Não devemos ser sinceros? Pois bem, a minha sinceridade só mostra o quão humana eu sou. Só mostra que eu não necessito mascarar meu ódio, minha repulsa, minha revolta, para fingir ser alguém melhor. Eu NÃO sou alguém melhor. Eu sou humana, e o que eu quero é  a cabeça desse infeliz empalhada na minha parede como troféu. Como quem diz: “Viu? Seu amor está feliz sem você e você está morto aqui na minha parede para aprender a não cultivar o altruísmo”.
- Chega, não dá mais para conversar com você. Parece louca.
- Tem razão, pareço mesmo. Você deveria escolher melhor suas companhias, hein?
- Não... não foi isso que eu disse, meu bem, eu só queria te alegrar...
- Mas você me alegrou, gosto de conversar sobre essas coisas, porque não consigo fingir que sou mais uma idiota que idolatra cada passo de outra pessoa. E, felizmente, se um dia aparecer alguém que aja assim e queira somente o meu bem, do meu lado ou não, terei dois pés prontos para dar um chute. Para que essa pessoa aprenda a me dar mais valor, já que amor não é essa coisa fofa de conto de fadas e sim uma constante necessidade de engolir a outra pessoa dentro do seu próprio mundo sem que ela possa sair para respirar ou perceber que existe vida sem você.
- Hey....
- Calma, amor, com você é diferente... - e sussurrou para si mesma – até eu me cansar...
sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011 0 conceito(s)

Sem Título VI


É o mais próximo de refúgio do tormento
Nada seguro e não sinto o mínimo de paz
Talvez, o meu refúgio e o meu tormento
Não sou lá, nada mais que leva-e-traz.

É o reviver todo doloroso passado
De lágrimas arrancadas e prescritas
Ao olhar para cada pessoa ou quadro
Com suas faces rancorosas e aflitas.

É como esquecer a ferida fresca
E concentrar na antiga cicatrizada
E se perguntar: qual a mais dantesca?

Ou como retornar à casa e não ter lugar
E concluir que morando cá ou ali
Nunca mais um local irá chamar de lar.
segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011 0 conceito(s)

Carta à exilada (cont.)

            Querida irmã,
            Previstes corretamente minha primária reação sobre tua demasiada confiança em tal jovem, porém, em mérito próprio, ocorreu-me no seguinte o que irias responder-me e mudei meu “conselho”. Portante, peço-te, exclusivamente, que certifique-te da boa fé alheia. Como remetente, esforçar-me-ei ao máximo para confiar a ti tua própria segurança. Afinal, irmãs caçulas agem assim, certo?
            Deve ser deveras excitante estar em tua pele nesta viagem, porém a culpa que carregas não me agrada nem ao mínimo. Escutes meus rogo: se há, em todas as antigas e novas terras, ser humano com maior fardo a carregar em toda a história que fez-te sair de casa, não és tu. Fizestes, unicamente, aquilo que teus impulsos mandaram. O que vem a ser apenas mais uma prova de que além de existir um grandioso coração em teu interior, é, ele, mais nobre do que imaginas.
            Sei que seria de teu imenso agrado se me iluminasse qualquer assunto aprazível e aleatório para dissertar agora, mas eis que nenhum me ocorre. Resta-me apenas despedir-me por hora, pedindo-te desculpas pelo desabafo, mas tua culpa pesava-me em demasia e precisava contar-te isto.
                                                                               Doces abraços,
                                                                                                    Catherine.
quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011 0 conceito(s)

As horas

00
A esta hora não importa o que faça
Chá ou leite quente
É dado início à sua desgraça

01
Por hora ainda não há pressa
Livros ou música
O tédio, sem tamanho, começa

02
Nesta hora tem início a despedida
Boa noite ou durma bem
Momento de intenção dividida

03
Pobre hora em que acredita-se na má-sorte
Nem sono, nem sexo
A vontade deveria ser mais forte

04
Pobre hora em que começa a obrigação
Nem livros, nem música
Quisera dormir com uma canção

05
Nesta hora, enfim, apaga-se a luz
Pássaros e galos
Mas a vontade de adormecer não faz jus

06
Por hora, de início, clareia-se o céu
Trânsito e passos
Atravessam da noite o transparente véu

07
A esta hora tenta-se uma última vez
Remédios e chá
Chance de repouso, quem sabe, talvez.
quarta-feira, 26 de janeiro de 2011 0 conceito(s)

Carta do exílio (cont.)

           Querida irmã,
           não sabes quão imensa foi a minha alegria ao receber tua carta após ansiosa espera. Imaginas o quanto eu gostaria que nossa distância encurtasse e pudéssemos conversar sem a presença de intermediários? Ou a dimensão da falta que sinto de poder abraçar-te e recorrer à tua eterna paciência, única que consegue tranquilizar meus exaltados ânimos nos momentos de conflito? Talvez tenhas ideia do que sinto, mesmo que esta seja ínfima perto da minha saudade. Passemos por cima disto, pois bem sei que sentes tanto a ausência quanto eu e não é justo acusar-te do contrário.
           Neste momento irei satisfazer tua curiosidade sobre o tal jovem. Não quero que te animes, não é ele nenhum amante secreto meu, talvez encontre-se um pouco enamorado por mim, mas nada que exceda a admiração em demasia, somente. Este pobre garoto segue agora comigo, não sei muito sobre a vida deste e nem posso te assegurar que é confiável, porém pelo que me respondestes em tua carta, ele pode dizer-se digno de meu respeito. Pediu-me que lhe chamasse apenas de Ben, não disse-me nem ao menos um sobrenome, isto não soa fascinante? Não te pareces alguém que gostaria de obter toda a minha confiança anteriormente e só depois revelar algum segredo tórrido e obscuro? Escuto-te, irmã, a dizer-me agora: “Não banques a sem juízo, Cristine, isto é loucura, e se estiveres na presença de um assassino?” . Mas para evitar que gastes teu tempo gostaria de lembrar-te que, no caso de sê-lo mesmo um assassino, compartilhamos da mesma baia nesse estábulo ao qual todas as pessoas estão presas. Sabes bem o porquê, não preciso repeti-lo.
           Não sei se tenho muito mais coisas a dizer-te. Vejamos... já expressei a imensidão da tua falta, já matei  tua curiosidade sobre o meu fiel escudeiro (se soubesses como tenho ânsias de rir quando penso desta maneira, ririas comigo)... Ah, e como ousou passar-me pela cabeça esquecer disto? Não vou repreender-te, tal como papai deve ter feito, sobre teus passeios noturnos. Creio que um dia o teu sufocar será tão grande quanto havia sido o meu e venhas juntar-te à mim. Preciso que acredites: o mundo fora desta prisão é centenas de vezes superior ao que imaginas. Não deixes que as ondas agarrem-te, querida, preciso de ti ao meu lado, mesmo que não fisicamente, és o meu suporte e desde sempre a única razão de não ter transformado-me em algo pior do que tornei-me visto os últimos acontecimentos.
                                                                Abraços, tão infindáveis quanto os teus,
                                                                                                                                        Cristine.

P.s.: Não vou enganar-te, observando tudo que tenho em volta sinto que meu “em breve” será além do habitual. A excitação em ver todas estas novidades, me afastando deste “teu” mundo verdadeiramente pela primeira vez, faz-me crer que posso trancar cá dentro toda a podridão e que dessa vez haverá alguém que acreditará em minha bondade, até satisfazer-me e estragar tudo novamente. Quem dera ter tão bondosa alma como a tua.
P.p.s: Esta carta não assemelha-se à mim, não é mesmo? Mas estou fazendo extremo esforço para ser o que quero e devo ser.
segunda-feira, 17 de janeiro de 2011 0 conceito(s)

Carta à exilada.

        Irmãzinha,
        Qual há de ser a reação de uma pessoa ao deparar-se com o mar? Não é, de fato, a primeira vez que o encaro, já que moro de frente para ele, mas eis que agora não é dia e não enxergo viva alma, apenas acompanho o movimento lunar. Nenhum artefato está sendo barganhado, ponho-me a pensar e não me arrisco a dizer o mesmo sobre as almas que observo andando languidamente como a se oferecer. Beira o inacreditável a diferença entre a multidão calorosa em demasia que há no decorrer do dia, e o admirável silêncio quebrado apenas pelos sussurros das ondas e os sutis gemidos das damas de pouco valor. Volto-me às ondas, não achas engraçado estas serem tão puramente inocentes durante o dia e, durante a noite, tornarem-se tão hipnotizantes, tão fatidicamente atrativas? E esta areia, soterrada e aquecida por todo o tempo de claridade, encontra-se sossegada e leve como se pudesse flutuar...
        Não achas risível minha capacidade de estar sentada debaixo deste envelhecido lampião, olhando para a orla sem dar-me conta das horas ou de onde estou? Sabes, irmã, de meu mau-hábito de sair para respirar, pois em minha opinião todo e qualquer aposento é agoniante. Isto não mudou e nem há de mudar por um bom tempo. Sei que eles nunca se cansarão de me avisar sobre o perigo de ir devanear durante a noite, mas se tu estás viva e bem, o que há de vir a acontecer comigo?
        Por falar em ti... onde arranjastes tão fiel mensageiro? Papai tentou fazê-lo falar através de todos os métodos e eis que o pobre recusou-se até a última tentativa. Nossa mãe, assim como sempre, se contenta em chorar e chorar e chorar. Quando vejo-me nesta situação quase dá-me vontade de ir até onde te encontras (imagino-te tão mais alegre onde quer que estejas), mas bate-me uma imensa covardia e pego-me uma vez a mais pensando em como gostaria de ser corajosa como és, para levantar minha voz e ir-me embora daqui de vez. Mas há o que me console... as tuas cartas são um exemplo disto, se até hoje não entreguei-me às forças invisíveis que insistem em me puxar para o mar, devo-te até o último fio de cabelo.
        Devo partir agora, não quero que minha pobre escrita canse teus distantes olhos que no momento em que escrevo devem estar tranquilos e adormecidos. Escrevas sempre já que não deves voltar tão cedo, mesmo que digas 'em breve'.
                                                                        Infindáveis abraços,
                                                                                        Catherine.
segunda-feira, 3 de janeiro de 2011 0 conceito(s)

Carta do exílio

 
               Querida irmã,
               peço-lhe que tenhas um pouco de cuidado com esta carta, já que o que estou a escrever não é para os pobres e infantis leitores que podem estar te rodeando agora. Portanto, antes de continuar aconselho-te para que sentes em algum lugar ausente de incômodos. Escrevo-te pelo enorme apego que tenho. Sinto que devo-lhe uma, forçada e não totalmente verdadeira, satisfação do meu motivo para abandonar-te e a todos os outros que contigo vivem.
               Os seus malditos sorrisos coniventes e suas alegrias perigosamente forçadas. Obrigações que não condizem a mim mas me envolvem e me arrastam fortemente. Atraente familiaridade que vejo de longe, tão repugnantes entranhas que vejo quando perto. Ao mesmo tempo assustadora e magnética. Tão jocosamente usando suas garras de acolhimento para depois desvesti-las e rasgar minha pele marcando meu grande e eterno título de traidora. Título com o qual sofro calada para não ganhar a inobre fama de mártir, que não me cai bem.
              O que dizer para estes que gritam: “Sim, claro, pequena sofredora, tua mãe lhe abandonaste quando criança, teu pai batia em ti e em tua irmã quando mais novas, certo? Por isto sofres tanto. Tens ainda a cruz de ter que trabalhar para sustentar toda tua família. Como podemos contestar tão grande sofrimento sendo que o nosso é tão infinitamente menor?”
             Aguento calada essas injúrias, pois tem eles razão. Dos males que me assaltam... nenhum se refere ao grande e único sofrimento que por eles me seria permitido, o físico. E nada seria menos aceito do que os que deveras me atingem. Então aguento cada um destes pesadelos, cada uma dessas ridículas e desajeitadas ironias que me são jogadas na cara. Pois que a única coisa que não seria bem recebida por eles seriam os verdadeiros motivos do meu exílio.
            Sei que faltam aqui os tais “verdadeiros motivos”, mas com tudo o que foi escrito nas linhas que acabastes de ler, creio que tivestes um amplo entendimento do que aconteceu comigo. Clareando-te mais um pouco, apenas não consigo ser recíproca a essa lei de apanhar, abaixar a cabeça, pedir desculpas (como se fossem minhas estas culpas), declarar-lhes amor eterno e continuar como se nada houvesse acontecido. Por acaso assemelho-me a um cachorro? Não, isso não. Se quiserem comparar-me a um animal, que comparem-me a um gato. Um animal que mantem-se junto aos outros por questões de sentir-se a salvo, por questões de manter-se alimentado e ter um lugar para dormir, nada mais.
            Mas, bem sei eu, não importa quantas pragas me forem jogadas, quantos títulos em minha pele forem rasgados nem quantas lágrimas meus cansados olhos venham a derramar... como um cavaleiro que já sabe conhecer o quão perigoso é o dragão e o quanto ele pode se ferir até sair vitorioso... Espere apenas minhas cicatrizes “tão sem motivos” esfriarem e eu voltarei para lhe ver. Na verdade, eu sempre voltarei para esse lar de mesquinhos e egoístas, pois que sou uma de vocês e quem sai aos seus não regenera.
                                                         Vejo-te em breve.
 
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