Soube com o tempo e uma intensa consciência sobre si mesma que se encaixava exatamente no que lhe fora dito. Hipócrita, falsária, mentirosa, escorregadia e amarga. Quando chegou ao "amarga" só pode pensar que era amarga, porém sem motivos, amarga por coisas que nunca aconteceram com ela ou nunca deixaram de acontecer. Era amarga justamente por não ser amarga. Mas em momento nenhum se chamou de infeliz. Poderia ser da pior espécie, porém não infeliz. Havia certa malícia no seu olhar quando se lembrou de cada uma das pessoas que se enganaram com a intensidade dos sentimentos que deixava transparecer. Abriu um sorriso ao se lembrar de como conseguia confundir qualquer um que tentasse deduzir algo por trás de seus olhares. Claro que não era tão forte quanto aparentava ser, mas pensar na realidade não a tornaria melhor. Enfim, saiu do seu banho que de rápido virou demorado e foi se arrumar para jantar. Jantares são sempre nostálgicos, agravando-se a situação por estarem naquele lugar as beiras do fim do mundo, lindo e fascinante, onde cada refeição demora entre uma hora e três assassinatos mentais para ficar pronto. Tempo de preparação esse que impedia-a de ter forças para não brigar com sua companhia. Jantar, nesse caso, se tornava sinônimo de intermináveis trocas de insulto, incansáveis comparações de quem agiu pior e infindáveis lutas para jogar na cara um do outro sobre o que já deveria ter sido esquecido. Dessa vez, repetiu consigo mesma que coisas importantes e geradoras de conflitos não devem atrapalhar a digestão da comida e do acompanhante. Quase simultaneamente ofereceram-se os braços, cruzaram-os e desceram as escadas para terminar esse momento torturante. Se houvesse sorte, o assunto não sairia de grunhidos para reais ofensas. E houve sorte. Voltou sozinha para o quarto observando o clima mudar, "a comida faz os ânimos se acalmarem". Se deitou sozinha, abriu os olhos com o primeiro sinal de claridade, novamente sozinha, nada novo, apenas mais um dia em que lhe era negado ser o que ela era. Mais um dia em que contradizendo a realidade estaria sozinha. Apenas com o silêncio, seu amigo mais apegado.
Filhas de um experimento, experimento em forma de filhas, continuidade, não recesso, salivas e sinos batendo.
Quem pra chamar de cruel um cientista que trabalha com animais? Quem pra chamar de cruel a vida que trabalha com os seres humanos?
Um sino, saliva. Uma surpresa, uma alegria, saliva. Uma memória, um cheiro, saliva. Uma tristeza, uma dor, sem saliva - ou não.
Um condicionamento, dois condicionamentos, milhares de condicionamentos. E a saliva é metafórica para os humanos - ou nem tanto assim.
Condicionados a respirar, a viver, a comer, a foder, a chorar, a viver, a respirar.
E condicionados, condicionados. E se não condicionados, mortos. De uma forma ou outra. A vida acaba para quem não é condicionado.
A vida só começa quando não se é condicionado.
Uma forma de vida que nunca será conhecida.
Uma forma de vida que nunca foi conhecida.
Uma forma de vida que não é.
Mesmo que insista.
Quem pra chamar de cruel um cientista que trabalha com animais? Quem pra chamar de cruel a vida que trabalha com os seres humanos?
Um sino, saliva. Uma surpresa, uma alegria, saliva. Uma memória, um cheiro, saliva. Uma tristeza, uma dor, sem saliva - ou não.
Um condicionamento, dois condicionamentos, milhares de condicionamentos. E a saliva é metafórica para os humanos - ou nem tanto assim.
Condicionados a respirar, a viver, a comer, a foder, a chorar, a viver, a respirar.
E condicionados, condicionados. E se não condicionados, mortos. De uma forma ou outra. A vida acaba para quem não é condicionado.
A vida só começa quando não se é condicionado.
Uma forma de vida que nunca será conhecida.
Uma forma de vida que nunca foi conhecida.
Uma forma de vida que não é.
Mesmo que insista.
Ela acordou um pouco tonta mas tranquila e descansada. Na verdade se sentia melhor do que há muito. Percebeu que ao seu lado em sua cama de casal havia um corpo morto por queimaduras e cortes. Não sabia diferenciar qual dos ferimentos matou. Olhou para o lado e em cima de seu criado havia uma faca grande e bem afiada como aquelas facas usadas em churrascos, um isqueiro bonito, daqueles de prata com enfeites que geralmente os fumantes ganham de presente e, por fim, uma cartela do seu antidepressivo favorito. Não reconhecia o corpo em estado lastimável que se encontrava ao seu lado, não se lembrava de ter dormido com alguém na noite passada, há tempos não recebia visitas e quando recebia demonstrava alguma má disposição pra todas elas se retirarem logo.
Mas a questão não era descobrir de quem era o corpo, pelo menos naquele momento, e sim como iria escondê-lo, já que o fato de não se lembrar do que ocorreu não a salvava da culpa que provavelmente cairia sobre ela quando descobrissem o crime. E, de qualquer maneira, se era necessário que alguém descobrisse sobre isso, seria ótimo que os detalhes fossem os mais bizarros possíveis "Se é para ser cruel, seremos extraordinariamente cruéis", deu uma risada, "Já falo no plural, devo ser louca mesmo. Essa pose irá cair bem no tribunal."
Pensou em fazer uma sopa e distribuir em algum lar de caridade, desistiu porque provavelmente alguém já havia feito aquilo e não queria a suspeita de algum serial killer ou não gostaria de ser comparada a um qualquer. Quem sabe bancar Der Metzgermeister e comer pedacinho por pedacinho a pessoa assassinada ao seu lado, desistiu novamente porque não gostava de carne queimada. Decidiu por fim abrir uma cova rasa no quintal onde os infernais filhos do vizinho brincavam e deixar um pedaço do dedo do lado de fora. Tinha ânsias de ser descoberta e estava consciente disso.
Depois de ter ajustado na sua tranquila cabeça como seria sua pequena aventura finalmente pode começar a vasculhar sua mente em busca de memórias da noite anterior. Tentando descobrir primeiramente de quem era aquele corpo rasgado, mutilado e queimado que iria enterrar em breve, olhou ao seu redor e percebeu que seu quarto se encontrava no mesmo estado lastimável do defunto, nada menos que destruído totalmente e, ao perceber isso, foi como se uma neblina que lhe cobria a vista desaparecesse. Notou que a faca estava jogada em um canto, o isqueiro quase não existia mais, assim como sua cortina, seus travesseiros, seu guarda roupa, sua tv e - "Espera, aquilo ali é a mangueira de gás?" - muitos flashs na sua cabeça começaram a surgir, a angústia da noite anterior, a solidão, a desistência, a escolha minuciosa sobre cada detalhe, primeiro os remédios, depois o sangue e depois o gás e se deparou no dia seguinte com o seu próprio corpo em uma situação melhor do que poderia ter imaginado, e riu "É... poderia ser pior... eu poderia ter que carregar esse corpo lá pra fora agora."
Mas a questão não era descobrir de quem era o corpo, pelo menos naquele momento, e sim como iria escondê-lo, já que o fato de não se lembrar do que ocorreu não a salvava da culpa que provavelmente cairia sobre ela quando descobrissem o crime. E, de qualquer maneira, se era necessário que alguém descobrisse sobre isso, seria ótimo que os detalhes fossem os mais bizarros possíveis "Se é para ser cruel, seremos extraordinariamente cruéis", deu uma risada, "Já falo no plural, devo ser louca mesmo. Essa pose irá cair bem no tribunal."
Pensou em fazer uma sopa e distribuir em algum lar de caridade, desistiu porque provavelmente alguém já havia feito aquilo e não queria a suspeita de algum serial killer ou não gostaria de ser comparada a um qualquer. Quem sabe bancar Der Metzgermeister e comer pedacinho por pedacinho a pessoa assassinada ao seu lado, desistiu novamente porque não gostava de carne queimada. Decidiu por fim abrir uma cova rasa no quintal onde os infernais filhos do vizinho brincavam e deixar um pedaço do dedo do lado de fora. Tinha ânsias de ser descoberta e estava consciente disso.
Depois de ter ajustado na sua tranquila cabeça como seria sua pequena aventura finalmente pode começar a vasculhar sua mente em busca de memórias da noite anterior. Tentando descobrir primeiramente de quem era aquele corpo rasgado, mutilado e queimado que iria enterrar em breve, olhou ao seu redor e percebeu que seu quarto se encontrava no mesmo estado lastimável do defunto, nada menos que destruído totalmente e, ao perceber isso, foi como se uma neblina que lhe cobria a vista desaparecesse. Notou que a faca estava jogada em um canto, o isqueiro quase não existia mais, assim como sua cortina, seus travesseiros, seu guarda roupa, sua tv e - "Espera, aquilo ali é a mangueira de gás?" - muitos flashs na sua cabeça começaram a surgir, a angústia da noite anterior, a solidão, a desistência, a escolha minuciosa sobre cada detalhe, primeiro os remédios, depois o sangue e depois o gás e se deparou no dia seguinte com o seu próprio corpo em uma situação melhor do que poderia ter imaginado, e riu "É... poderia ser pior... eu poderia ter que carregar esse corpo lá pra fora agora."
Era só mais uma vez. Diferente das outras só havia a bebida. O que poderia ser um sinal de que até Aline se encontrava exausta. E talvez por ser Aline quem executava a ação, esta foi mais profunda que o normal. Adormeceu logo depois, dor e sono juntos, como sempre seria. No dia seguinte, desnorteada, nem ao menos se lembrou do que havia feito até olhar seu pulso, ou melhor, todo o seu ante-braço, pernas, garganta. Realmente, longe demais. Sorte sua o tempo ter virado tão depressa. Blusas de frio com o calor que estava seria abusar da burrice alheia. De qualquer maneira, de problemas já bastavam os que não lhe pertenciam e mesmo assim carregava. E ainda havia aquela confusão do dia anterior, o que era mesmo? Não tinha muita certeza. Gostaria de se mover, mas a verdade é que estava apreciando em demasia ficar ali, parada. Pelada, sem coragem de olhar para o lado e ver se estava acompanhada. Bobagem, ela sempre estava acompanhada... engraçado... sempre que pensava assim ela sentia um arrepio, por que não dessa vez? Gabriella... só poderia ser obra de Gabriella, o bom senso e a frieza que tomavam conta de Aline, com certeza, não lhe eram típicos. E quando sentiu uma vontade repentina de chorar (obra de Amélie, apostou) percebeu que já começava tudo a se misturar novamente, elas voltavam, Gabriella, Amélie, Aline... quem era ela afinal? Sua cabeça rodava, doía, latejava, explodia. "Não, eu não sou nenhuma dessas". Respirando fundo, se contendo o suficiente, decidiu que não queria descobrir quem era (ou eram) a responsável pelos problemas da noite dessa vez. Uma hora, de certo, uma delas piraria.
I
Verdadeiras as minhas palavras
Verdadeiros meus sentimentos
Visto que são tormentos
Visto que são o que lavras.
II
Vista sua roupa nova
Por cima de coração carcomido
Enfeite-se com aquela trova
Do seu choro conhecido.
III
Vejo, o que digo que não vejo
Não escuto, enquanto lhe presto atenção
Não digo, para corromper sua opinião
Respiro, para não deixar vago meu azulejo
(afinal parece que na vida o espaço é rotativo, não?)
IV
E por aqui fica lançado:
Eu não preciso de frases rimadas,
preciso é que de fato entendas,
minha palavra é tão ou mais falsa do que pensas.
Verdadeiras as minhas palavras
Verdadeiros meus sentimentos
Visto que são tormentos
Visto que são o que lavras.
II
Vista sua roupa nova
Por cima de coração carcomido
Enfeite-se com aquela trova
Do seu choro conhecido.
III
Vejo, o que digo que não vejo
Não escuto, enquanto lhe presto atenção
Não digo, para corromper sua opinião
Respiro, para não deixar vago meu azulejo
(afinal parece que na vida o espaço é rotativo, não?)
IV
E por aqui fica lançado:
Eu não preciso de frases rimadas,
preciso é que de fato entendas,
minha palavra é tão ou mais falsa do que pensas.
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